Amor e medo


Há uns tempos atrás, na outra encarnação deste blog, havia uma seção fixa chamada “versos de segunda”. Ah, os trocadilhos infelizes da mocidade. Na época, parecia um nome ideal para a poesia que era publicada todas as segundas-feiras. Enfim.

Não vou retomar a tradição. Mas, por coincidência, hoje é segunda feira. E, por coincidência, hoje me passou nos olhos um poema que não lia há tempos, do qual gosto muito, e que foi um dos publicados naquela época.

Nunca entendi porque Casimiro de Abreu não tem o mesmo status que Castro Alves, Álvares de Azevedo, só para ficar nos seus contemporâneos de romantismo. Talvez aos olhos de hoje ele pareça meio bobo, sem o lado dark de Azevedo ou o épico de Castro Alves e seu céu do condor. Ou a modinha do momento, Augusto dos Anjos, escarra na boca que te beija, etc, etc. Tudo isso está bem mais de acordo com a modernidade do que o eu-lírico de Casimiro, sempre (aparentemente) tímido, respeitador da coisa amada.

Casimiro faz “poesia”, no sentido pejorativo moderno. Ele é lírico, ele é doce (agridoce, por vezes, mas…), ele, pecado dos pecados, faz até algumas rimas. Escolhe as palavras. Burila o verso. Sonoriza o poema. Tudo isso é tão demodé

Casimiro de Abreu tem um poema clássico, daqueles que todos conhecem pelo menos o primeiro verso. “Oh, que saudades que eu tenho da minha infância querida”, digo. E muitos dos leitores já completam, “da aurora da minha vida que os anos não trazem mais”.

É lindo. Verdade. Mas está longe de ser o único.

Pessoalmente, eu adoro “Amor e Medo”. Pelo tema, pela poesia quase prosa, que conta uma história em poucas estrofes. Pela construção, pela escolha de palavras. E pelo ritmo. Casimiro é para ser declamado, lido em voz alta. Saboreado pelos olhos e pelos ouvidos. E pelos outros sentidos também.

Quando eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
” Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!”
Como te enganas! meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco…
És bela eu moço; tens amor eu medo!…

Em duas estrofes, Casimiro apresenta o tema. O contraponto fogo/gelo, quente/frio, dá o ritmo desse trecho, e irá seguir por todo o poema. O ritmo aqui é frio. A bela é quente, é calor, “suspira amores”. O moço, responsável, “se desvia cauto”, e responde a ela no poema, calmamente, ainda racional. “Meu amor é chama, que se alimenta no voraz segredo”. O tom em que ele fala isso é argumentativo. Aqui, ele ainda tenta mostrar que não é bem assim, que ela está enganada, e faz isso com palavras, apenas.

Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz da sombra, do silêncio ou vozes,
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.
O véu da noite me atormenta em dores,
A luz da aurora me intumesce os seios,
E ao vento fresco do cair das tardes
Eu me estremeço de cruéis receios.
É que esse vento que na várzea ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!
Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia,
Diz: que seria da plantinha humilde
Que à sombra dele tão feliz crescia?
A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho,
E a pobre nunca reviver pudera,
Chovesse embora paternal orvalho!

Note-se aqui a sequencia de materialização da natureza. Para quem vive assustado, prisioneiro do medo causado pela bela, tudo lhe parece “assustador”. O silêncio e as vozes. As folhas secas, e as fontes que choram – ou seja, molham. O véu da noite e a luz da aurora. Claro/escuro. Luz/trevas. Vento/fumo. Quente/frio.

E aqui o poeta coloca mais claramente toda a carga sensual implícita do poema. A “bela”, pura e virgem, sempre idealizada, que nunca pode ser tocada. E o “moço”, de caráter, que tem medo do que possa acontecer se ele ceder ao amor.

O riso da bela ateia um fogo, uma pequena chama, que está sob controle. Mas há o vento que sopra e pode tornar essa chama incêndio. E então,  “se abrasado crepitasse o cedro, cedendo ao raio que a tormenta envia, diz: que seria da plantinha humilde que à sombra dele tão feliz crescia?”. Se o moço cede à chama da paixão, que seria da menina humilde que ainda não floresceu, e está à sua sombra? Então, a labareda se enrosca ao tronco, torra a planta-bela qual queimara o galho-moço. E a chama daquela paixão, que já queimou um, agora torra a outra, “enroscando” um ao outro, de maneira tal que a “pobre” jamais poderia reviver, ou seja, voltar a ser o que era antes de ser atingida pela chama. Ainda que o “paternal orvalho chovesse”. Não importa o quanto se chorasse depois do fogo ter feito sua parte.

Na versão original, o poema é dividido em dois capítulos. Aqui, finda o primeiro e começa o segundo. O tom dos versos vai mudar. Até aqui, foi um aviso, cautela com os perigos que podem ser trazidos pelo fogo ou pelo vento. Agora, o claro/escuro da primeira parte dá lugar a imagens mais sensuais. O ritmo dos versos acelera, como acelera o coração do poeta. E o leitor acompanha, aumentando o ritmo, a imaginação do poeta.

Ai! se eu te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas!…
Ai! se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos palpitante o seio!…

Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala a protestar baixinho…
Vermelha a boca, soluçando um beijo!…
Diz: que seria da pureza d’anjo,
Das vestes alvas, do cantor das asas?

Poucas descrições na nossa literatura são mais belas do que essas duas estrofes. O vestido, obviamente branco, amarrotado, os cabelos soltos, os ombros desnudos. Sinais da paixão. O veludo, macio, os olhos semi-cerrados, o seio palpitante, a face rosada… E imaginando tudo isso, o medo do poeta. Resistir, como?

Tu te queimaras, a pisar descalça,
Criança louca, sobre um chão de brasas!
No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!
Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço
Anjo enlodado nos pauís da terra.
Depois… desperta no febril delírio,
Olhos pisados como um vão lamento,
Tu perguntaras: qu’é da minha c’roa?…
Eu te diria: desfolhou – a o vento!…

O ritmo continua em subida. As exclamações se sucedem. O tempo verbal se modifica. Na estrofe anterior, “se eu te visse”, havia uma condicional. O normal aqui seria o tempo verbal continuar nesse sentido. “Tu te queimarias”, “eu me abrasaria”. Não é o que acontece.

E voltamos ao fogo. “Criança que pisa descalça em brasas”, ou seja, na linguagem mais popular, “está brincando com o fogo”, arriscando se queimar. E o moço, apaixonado, acaba por machucar, com o “dedo impuro”, as flores da “grinalda virgem”. E depois, qual “vampiro infame”, ele sorveria a inocência da bela, que então seria, nesse verso marcante e tantas vezes citado, um “anjo enlodado nos pauís da terra”.

Uma sucessão de imagens fortes, de sutilezas referenciais. Um “dedo impuro” que “machuca as flores”, ou seja, deflora uma “grinalda virgem”. Depois, o “vampiro”, uma das metáforas sexuais mais recorrentes da literatura romântica, por ser um espírito malvado que “derrama o sangue” de inocentes. E depois, numa sequencia lógica, a bela que teve suas flores machucadas por um “dedo impuro”, e perdeu sua inocência em um “abraço lascivo de um vampiro infame”, se torna o que? Um anjo enlodado, que deixa a altura dos céus e desce, não apenas à terra, mas aos pântanos, que ficam ainda abaixo do nível da terra.

Esse é o ápice do poema. Ele vai em um crescendo emocional, em um aumento do ritmo, da velocidade, até chegar nesse verso. Aí, pede-se uma pausa. Um silêncio de alguns segundos, seguido pelo “depois”, com todas as reticências, que terão que conter em si tudo que aconteceu nesse tempo, e não está explícito nos versos.

A última quadra desse trecho traz o desfecho possível para essa fogueira acesa: quando despera do seu “febril delírio”, a moça percebe que perdeu a sua “coroa”, aquela mesma que foi machucada pelo dedo impuro. E pergunta, “o que é feito da minha coroa?”, ao que o moço apenas responde, “desfolhou-a, o vento”. Desmanchou a grinalda. Desfolhou. Deflorou. E que vento é esse? Aquele mesmo, que lá atrás, na primeira parte, acendeu o fogo. Se a consequencia natural da paixão da bela foi ter sua coroa desfolhada, a culpa toda foi do vento que soprou sua paixão.

Isso é literatura de primeira qualidade. Tanto subtexto em tão pouco texto, tanto trabalho com as palavras, para criar um encadeamento lógico, vestido em uma capa de versos decassílabos, tão bem ritmados… Arte. Em seu estado máximo.

No final, uma estrofe que amarra todo o poema.

Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí – me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito,
És bela eu moço; tens amor, eu medo!…

E só aí o leitor desperta, junto com o poeta. Tudo aquilo… apenas um sonho? Nada aconteceu realmente. E esses versos resumem toda a ideologia do poema, da época. A bela apaixonada, o moço responsável, que foge, por temer se descontrolar. Lá no início, a bela dizia: “mas que frieza!”, ao que o moço respondia que seu amor era “chama que se alimenta no voraz segredo”. Conhecemos agora esse segredo. Conhecemos o que ele teme e deseja, ao mesmo tempo. Sabemos como é difícil manter esse segredo, e ainda levar a fama de “frio”. E temos uma última, e central antítese: se de ti fujo, é que te adoro e muito. Não é a frieza que me faz ficar longe, é o amor. É o medo do mal que possa te causar com ele. Eu amo um anjo. E fujo do anjo, por medo de torna-la “enlodada nos pauís da terra”.

É natural que isso soe anacrônico nos dias de hoje. Mas não é menos belo por causa disso.

E o encerramento vem com a repetição do refrão, outra técnica comum na poesia romântica. És bela, eu moço. Tens amor, eu medo.

Até ao final, este amor que teme suas consequencias. Um sentimento que, para não ser antiético, é sempre antitético.

2 Responses to Amor e medo

  1. Bina disse:

    Preciso dizer que é belíssimo texto? Acho que não, né? :-p
    Vc sabe que é o meu favorito tb, o meu poeta romântico por excelência e, na literatura brasileira, só divide espaço na minha preferência com Cecília Meireles. Já fui considerada uma ET na faculdade por causa disso pois, segundo papa Cândido, Casimiro é um poeta popular demais e, portanto, menor.
    Eu, como vc, amo o ritmo, difícil de se encontrar em outros poetas. A valsa é um dos meus poemas preferidos entre todos que já li. Adoro também Simpatia, Risos. Amor e medo eu tb gosto muito, embora não esteja no meu top 5.
    Agora, eu não resisto:
    “Oh, que saudades que tenho
    da aurora da minha vida
    da minha infância querida
    que os anos não trazem mais”
    Era o contrário 😛
    :-****

  2. Ivan disse:

    Muito interessante a postagem, em seus comentários e análise detalhada do poema: foi um prazer chegar aqui por acaso (estava apenas procurando o texto deste poema do Casimiro) e me deparar com algo assim, tão circunstanciado.

    Pra não faltar com meu papel de chato da galáxia, entretanto, observo que a palavra “pauis” (plural de “paul” [pântano]) não deve ser acentuada, e se pronuncia “pa-Úis”.

    A propósito, lembrei que há um poema de Fernando Pessoa começando com essa palavra, e isso me conduzirá agora a mais pesquisas e releituras…

    Não obstante, observo mais: arrumados uns pequenos detalhes desimportantes de transcrição e digitação (e.g. “traí-me” em vez de “traí – me”; ver também a pontuação do verso final), essa postagem realmente se defenderia bem como artigo crítico em qualquer publicação interessante sobre poesia brasileira.

    Saudações,

    Ivan

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