Passageiro para Frankfurt


Atendendo a pedidos, repost de um texto escrito há alguns anos atrás.

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PASSAGEIRO PARA FRANKFURT
(Passenger to Frankfurt)
Autora: Agatha Christie
Ano: 1970
Classificação: * * * *

“A liderança, além de uma grande força criativa, pode ser diabólica.”
(Jan Smuts, primeiro-ministro da África do Sul no início do séxulo XX)

“Minha dor é perceber que, apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda
somos os mesmos e vivemos como nossos pais.”

(Belchior)

“Será que ninguém vê o caos em que vivemos? Os jovens são tão jovens e fica tudo por isso mesmo… A juventude está sozinha, não há ninguém para ajudar a explicar por que é que o mundo é este desastre que aí está. Eu não sei… Eu não sei… E meus amigos parecem ter medo de quem fala o quem sentiu, de quem pensa diferente. Nos querem todos iguais: assim fica mais fácil nos controlar.”
(Renato Russo)

O diplomata inglês Sir Stafford Nye está voltando a Londres, depois de uma série de tediosas reuniões na Malaia. É um homem considerado por todos como alguém muito inteligente, mas que não é uma pessoa “séria”, preferindo o prazer de uma brincadeira a cumprir o seu dever. Essa fama o impede de atingir postos mais altos na diplomacia, embora isso não o incomode: ele está muito satisfeito com o que tem, e concorda com a avaliação que fazem dele.

Por causa do mau tempo, o avião onde ele viaja é obrigado a fazer um pouso de emergência em Frankfurt, onde fica algumas horas. No aeroporto de Frankfurt, uma moça se aproxima de Sir Stafford. Ela não é especialmente bela ou atraente, mas traz a Sir Stafford algo que ele não pode resistir: uma história misteriosa e com gosto de aventura.

A desconhecida diz que está sendo caçada por espiões, e pede ajuda a Sir Stafford. Segundo ela, sua única chance de escapar é roubar o passaporte do inglês e a vistosa capa que ele traz vestido, assumindo a sua identidade. Para isso, ela lhe oferece uma cerveja, e avisa que a bebida está drogada, o que o fará dormir até que ela chegue segura em Londres.

Sir Stafford, como sempre, não resiste ao dramatismo da situação, e aceita a proposta. Bebe a cerveja, e adormece profundamente. Acorda horas depois, cercado por médicos e pela polícia alemã. A garota desapareceu e, a essa hora, já desembarcou em Londres usando a capa e o passaporte de Sir Stafford.

Ele não sabe disso, mas acaba de desempenhar um papel muito importante em algo grande que está acontecendo ao redor do mundo: uma conspiração anarquista, que pretende mudar toda a ordem política mundial…
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“Passageiro para Frankfurt” é considerado pela maioria dos fãs de Agatha como o seu pior livro. É uma injustiça. É um livro difícil, fora das características tradicionais da autora, mas é um livro muito bom. Não, não é um livro policial. Tem humor, tem romance, tem suspense, mas em doses bem menores que outros livros mais conceituados. O que é “Passageiro para Frankfurt”? Porque ele foi escrito? Sem responder essas perguntas é impossível classificar este livro.

“Passageiro para Frankfurt” é de 1970, e isso é algo que deve ser lembrado a cada parágrafo. O contexto histórico ajuda muito a explicar o sentido dele.

Primeiro, vamos comparar a vida de Agatha com essa data. É um dos últimos livros de sua vida (depois dele, há mais três, salvo erro). É uma Agatha com uma idade considerável, quase 80 anos, que sabe que não lhe resta muito tempo mais.

“Passageiro para Frankfurt” é o testamento de Agatha Christie. É a forma como ela vê um mundo que ela não entende, que não lhe agrada. Uma juventude que parece a ela ser algo preocupante. Os outros livros dessa época, em sua maioria, também falam deste tema, tendo como protagonistas jovens “modernos” desorientados. “A terceira moça” é o melhor exemplo.

Historicamente, o final dos anos 60 assistiu a movimentos “rebeldes” da juventude, passando pelo movimento hippie, pelas passeatas contra o Vietnã, e culminando com os distúrbios de Paris, em 1968. Para Agatha, isso é uma baderna indesculpável. Quem leu a Autobiografia, e conhece um pouco da juventude da Agatha, não tem dificuldade de perceber que a geração de 68 representa tudo aquilo que ela mais despreza.

“Passageiro para Frankfurt” é uma resposta a isso. O enredo conta uma conspiração mundial, que se aproveita dos jovens, manipulando-os para conquistar o poder em todo o mundo. Para isso, recorrem à violência física e a uma orquestrada “revolução comportamental”, com sexo e drogas passando a ser sinônimos de “liberdade”.

O centro dessa conspiração é a Alemanha, e Agatha deixa bem claro que essa “revolução jovem” nada mais é que um nazismo encapotado, um nazismo que não ousa dizer seu nome. As características desses grupos pós-68 são semelhantes a algumas faces do nazismo: culto da violência, da perfeição física, intolerância com opiniões diferentes, o “novo perfeito” em oposição ao “velho ultrapassado”. Para tomar o poder, vale tudo: terrorismo, propaganda, “revolução cultural”. Alguns países são a vanguarda do mundo, onde os jovens estão mais ativos, no processo de desmonte dos governos. Entre eles, está um país da América do Sul, o Brasil. Pensem no que era o Brasil nessa época, na guerrilha, nas passeatas de agitação, na baderna, e não é difícil entender o porque dessa escolha…
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Sim, “Passageiro para Frankfurt” é um testamento. É um aviso. Agatha vê para onde o mundo caminha, sabe que não vai viver para ver esse resultado, mas deixa um aviso. E é impressionante perceber como ela está certa, como certas coisas evoluíram exatamente da maneira que ela prevê nesse livro.

Alguns podem dizer que ela é uma exagerada, que o mundo não ficou tão ruim como se temia. Talvez as pessoas pensem assim porque já estão tão acostumadas a esse mundo, que não enxergam o que ele se tornou. Uma ideologia rebelde, contestatória, que levou o mundo a um estado de violência, de anarquia, de terror. Uma espiral que fica cada vez pior. Aqueles jovens de 68 estão no poder hoje, em diversos países. E não precisamos ir muito longe para ver isso…

O livro é permeado por diversas citações literárias, filosóficas, mitológicas. Dois exemplos se destacam entre os outros. O primeiro é o mito da “caixa de Pandora”. Resumidamente, essa caixa continha todo o conhecimento do universo, mas nunca devia ser aberta por um mortal. Um dia, o homem não resistiu ao poder, e abriu a caixa de Pandora, espalhando todo o mal pelo mundo, o mal que estava dentro da caixa, junto com o conhecimento.

A “revolução dos costumes” é uma caixa de Pandora. Por exemplo, dizem que trouxe “liberdade sexual”, mas, na verdade, jogou a juventude numa escravidão bem pior. No lugar da repressão da sociedade vitoriana, vem uma permissividade obrigatória, que discrimina o jovem que escolha ser mais… ahn… “pacato”. Casamento é “careta”, fidelidade é “reacionária”. Antes, se você quisesse pertencer ao grupo, devia ser “bem comportado”. Hoje, se você quiser pertencer, deve ser “contestador”. Se há diferença, é para pior.

E a sociedade que veio depois da abertura da caixa de Pandora é sempre assim. Sob a capa de “liberdade”, escravizam a juventude num novo modelo, que obriga o conformismo com seus pares, travestido de “rebeldia contra os velhos”. Todos agem igual, achando que estão sendo “diferentes”.

E esse processo se repete até hoje: jovens, que se iludem, que acham que são “diferentes”, quando na verdade não se distinguem do grupo ao qual pertencem. “Minha dor é perceber que somos como nossos pais”.

Outra citação inesquecível é a do perturbador livro “Laranja Mecânica”. Essa obra, para quem não conhece, mostra a história de uma gang de delinquentes juvenis. O líder do bando é preso e, como teste, lhe fazem um tratamento que tira a sua agressividade, tirando junto toda a sua capacidade de sentir emoções.

Em “Passageiro para Frankfurt” há alguns personagens que defendem um tratamento semelhante para lidar com a juventude. É o “Projeto Benvo”, abreviatura de “benevolência”, que promete deixar todas as pessoas se amando umas às outras, como irmãos que são. E, claro, o movimento dos “jovens” tenta se apoderar dessa fórmula.

“Laranja mecânica” não é citado diretamente em momento algum. Mas os pontos em comum entre uma história e outra são em número considerável. É interessante também notar que o filme de Stanley Kubrick, baseado no livro “Laranja Mecânica”, é também desse mesmo ano de 1970, o que só prova que o assunto estava na moda.
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“Passageiro para Frankfurt” não é um livro para todos os gostos. E eu não pretendo tentar convencer ninguém de que este livro é excelente. É um livro difícil de ser compreendido, difícil de ser apreciado, e eu entendo perfeitamente bem aqueles que o consideram ruim.

Como policial, ele pode não ser tão bom. Como um documento de época, como análise sociológica, como previsão do futuro, ele é maravilhoso. E inquietante, porque nos faz pensar no mundo que se formou a partir dessa “juventude dourada” e o mundo em que vivemos hoje. É uma obra que vale mais pelo que não está escrito, pelas reflexões múltiplas que sua leitura nos traz. Não é literatura de “entretenimento”, não é um livro descartável, daqueles que a gente lê e esquece em cinco minutos. Quem o lê nesse estado de espírito, quase certamente irá odiar. É um livro para se ler com esse embasamento histórico, com esse sentimento de que é um livro-testamento, um comentário sobre a sociedade que começava a nascer no final dos anos 60, analisado pelo ponto de vista de uma “velha ultrapassada”. Uma “velha” do século passado, que já tinha vivido muito, e que se sentia feliz de ir embora antes que essa geração assumisse o poder.

Agatha Christie é uma “reacionária”, isso é inegável. E, se alguém a chamasse assim, não tenho dúvidas de que ela iria agradecer o elogio. “Passageiro para Frankfurt”, o testamento de Dame Agatha, é mais um motivo para nos fazer ver que ela não é “apenas” a melhor escritora policial de todos os tempos.

6 Responses to Passageiro para Frankfurt

  1. Tommy Beresford disse:

    Chegando ao post através do Google, convido a todos para conhecerem um blog recém-lançado sobre a Dama do Crime:

    O Mundo de Agatha Christie
    http://acasatorta.wordpress.com

    Um abraço, sucesso.

  2. Carol disse:

    Veja o que escrevi sobre as amizades virtuais.
    Bjs.

  3. Maria disse:

    O Livro para mim é fantástico. Histórico. Profundo. Um ensaio.

  4. Maria disse:

    Por favor, saberia onde encontro audiobooks?
    Grata

  5. rachel disse:

    Ainda não terminei o livro mais estou gostando muito, é diferente de O homem do terno Marron, ou os crimes abc, mais é um livro de qualidade sim!

  6. Juliane disse:

    Eu estou tentendo le-lo mais esta um pouco confuso mais o pouco que consegui entender desse livro ja vi que sera uma j=historia bem interessante de ler lida!

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